Encerrando o mês da consciência negra, Dyxel convida a futura jornalista Maria Carolina para falar sobre o tema

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Para encerrar o mês em que se comemora a data máxima da consciência negra, a Dyxel Game Publisher novamente cede seu espaço para que uma pessoa preta exerça o lugar de fala, tão necessário na sociedade atual, incluindo a área gaming. Desta vez, a convidada é Maria Carolina Silva de Sousa, estudante de jornalismo no Fiam Faam – Centro Universitário, militante do movimento negro e estudiosa das obras de Octavia E. Butler. A indicação partiu da docente, integrante do Núcleo de Estudos Étnico-Raciais (NERA), responsável pela Revista Dumela e doutoranda na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), Profa. Carla Tôzo, que acompanha o início da trajetória profissional desta jovem.

Com a palavra, Maria Carolina:

“Passei alguns dias após o convite da Érika Caramello para pensar no texto que iria escrever. Não apenas por mim mesma, mas também pelo significado das manifestações realizadas durante este mês de novembro, que são rotineiras para diversas pessoas que buscam pautar por meio de postagens nas redes sociais e em ações promovidas por coletivos ou grupos militantes, a importância de promover diálogos e compartilhar informações verídicas e precisas sobre nossa história e as diversas formas do impacto e consequência do racismo enraizado em nossa sociedade.

Não é uma tarefa fácil e até parece um trabalho de formiguinha, visto que ainda existem situações que buscam mascarar, ou até mesmo anular, o fato de que nosso passado causa interferência direta em nosso presente e na maneira como lidamos com ele, como o fato de ainda ser utilizado o discurso do mito da democracia racial criado por Gilberto Freyre em 1933, quando o autor publicou o livro Casa-Grande & Senzala. Chega a ser insultante, em alguns momentos, quando aplicam a expressão “todos somos iguais”, sendo que numa televisão próxima é possível acompanhar mais de um caso de alguma vítima morta por conta da sua cor de pele.

Enquanto estudante de jornalismo, torna-se perceptível que a mídia tradicional possui uma agenda hegemônica para quando for preciso cobrir assuntos que dizem respeito a população negra e periférica. O que me fez lembrar da cobertura que realizei em um congresso de jornalismo investigativo neste ano. Durante a mesa sobre jornalismo periférico, em uma das falas do palestrante, é apontado que a escolha da pauta (tema) deve ser trabalhada enquanto território – ideia que foi apresentada pelo geógrafo Milton Santos – e não apenas como uma mera notícia que precisa ser transmitida. Ou seja, é preciso entender e respeitar as vivências, contextos, culturas e os povos que serão retratados, de maneira a não criar estereótipos e forçar uma realidade que não existe. Com isso, temos uma crescente de portais de notícias independentes, que possibilitam a expansão de conteúdo realizado por pessoas que são negligenciadas e tem sua voz silenciada. Um exemplo a ser citado é o belíssimo trabalho feito pelo Nós, mulheres na periferia desde 2012.

Ocupar um espaço que seja importante, especialmente dentro de estruturas sociais que tenham majoritariamente pessoas brancas, ainda é um ganho que precisa vir em meio a lutas, mesmo quando se tem as habilidades necessárias e desejadas. Segundo o último levantamento feito pela plataforma de vagas e bolsas de estudos Quero Bolsa, com base nos dados do Cadastro Geral de Empregado e Desempregados (Caged), somente 3,68% dos cargos de lideranças em 2019 eram geridos por pessoas negras em São Paulo. É um resultado bastante expressivo, especialmente se levarmos em conta as percepções dos ambientes acadêmicos, que demonstram um distanciamento no uso de pensadores negros importantes, como Abdias do Nacimento e Lélia Gonzalez.

Por falar na intelectual, política, professora e antropóloga brasileira, suas obras merecem maior (re)conhecimento, pois sua trajetória de vida e o despertar de sua compreensão de mundo enquanto mulher negra e militante são verdadeiramente inspiradores. Como uma intérprete na forma de representação da discussão política e sociocultural latina, Gonzalez é uma figura crucial para trazer a luz de forma atemporal, o descaso reproduzido ano após anos pelo governo e parte da própria sociedade brasileira sobre a população negra, particularmente aquela marginalizada e oprimida, além de expressar a importância do movimento negro e do entendimento com suas raízes. Em uma fala extremamente cirúrgica e que nos faz refletir, ela diz que “a gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude, está na luta contra o racismo.”


No universo dos games e até mesmo do ambiente nerd e da cultura geek de modo geral, percebe-se que existe pouca representatividade.


Por isso, foi realmente bonito, embora agridoce, ver as diversas manifestações emocionadas quando o filme Pantera Negra foi lançado no cinema e depois a tristeza imensurável que a perda do ator Chadwick Boseman (que interpreta o personagem de mesmo nome), trouxe. Ele era um talento natural que transformou um ícone dos quadrinhos em uma força e significado para além do entretenimento. Não é chocante, inclusive, perceber que no 2º Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais realizado pelo Ministério da Cultura em 2018, apenas 10% das empresas são formadas por sócios e colaboradores afrodescendentes. Não basta apenas postar uma foto ou declaração com a hashtag sobre o movimento #BlackLivesMatter sinalizando que você é um apoiador da causa, quando isto não se estende em dar oportunidades para pessoas pretas ingressarem neste mercado.

A realidade é apenas uma: ainda existe muito trabalho a ser realizado. Contudo, espaços como este da Dyxel e o consumo de conteúdos e produtos produzidos por pessoas pretas já é um passo muito importante. Além de sempre se dispor a ouvir e estudar, além de aplicar os conceitos de desconstrução e empatia, que reforçam mais o recado. Somos todos frutos de uma sociedade que buscou esconder a sua própria história em nome dos bons costumes, de forma a nos tornar ignorantes diante de tantas problemáticas. Porém, quando tiramos aquele véu que nos é imposto e impede de olhar para o lado e ver as injustiças que somos cercados, percebemos que o “novembro” acontece o ano todo e que precisamos cada dia mais lutarmos por nossos direitos e vida. “A carne mais barata do mercado é a carne negra, que fez e faz história, segurando esse país no braço, o cabra aqui não se sente revoltado, porque o revólver já está engatilhado”, como já diria Elza Soares.”